30/11/2007

Ocean Drops IV - final



(From Heart Sutra, Dalai Lama)

Assim, existem campos para se promover o diálogo e a harmonia entre as religiões, e existem métodos. Estabelecer e manter essa harmonia é de vital importância porque sem isso as pessoas podem facilmente criar desavenças umas com as outras. No pior dos casos, surgem conflitos e hostilidade, levando ao derramamento de sangue e à guerra. Muitas vezes, algum tipo de diferença ou intolerância religiosa está na raiz de muitos desses conflitos. No entanto, supõe-se que a religião arrefeça a hostilidade, atenue conflitos e traga paz. É trágico a própria religião tornar-se outro motivo para a criação de discórdia. Quando isso acontece, a religião não tem valor para a humanidade- de fato, é prejudicial. Contudo, não creio que devamos abolir a religião; ela ainda pode ser um instrumento para o desenvolvimento da paz entre as pessoas no mundo.

Além disso, embora possamos ressaltar importantes avanços na tecnologia, e até no que chamamos “qualidade de vida”, ainda temos determinadas dificuldades que a tecnologia e o dinheiro não podem resolver: sentimos ansiedade, medo, ira, tristeza por perda ou separação. Somadas a essas dificuldades, temos muitas queixas cotidianas – eu com certeza tenho, e imagino que vocês também.

Esses são determinados aspectos fundamentais do ser humano que permaneceram inalterados por milhares, talvez milhões de anos, e serão superados somente através da paz mental. De um jeito ou de outro, todas as religiões abordam essas questões. Assim, mesmo no século XXI, as várias tradições religiosas ainda possuem um objetivo muito importante – proporcionar paz mental a seus seguidores.

Precisamos da religião a fim de desenvolver tanto a paz interior quanto a paz entre os povos do mundo; esse é o papel essencial da religião hoje em dia. E, na busca desse objetivo, torna-se imprescindível a harmonia entre as diferentes tradições.

Aprender com outras tradições

Embora não recomende que uma pessoa abandone sua religião original, creio que o seguidor de uma tradição pode incorporar em sua prática certos métodos de transformação espiritual encontrados em outras tradições. Alguns de meus amigos cristãos, por exemplo, embora permaneçam ligados de maneira firme à sua própria tradição, incorporam antigos métodos indianos para o cultivo da unidirecionalidade da mente por meio da concentração meditativa. Também tomam emprestadas algumas ferramentas do Budismo para treinar a mente durante a meditação, visualizações relacionadas ao desenvolvimento da compaixão, e práticas que ajudam na amplitude da paciência. Esses cristãos devotos, ao mesmo tempo que permanecem solidamente ligados à sua própria tradição espiritual, adotam determinados aspectos e métodos de outras religiões. Creio que isso é benéfico para eles, e sábio.

Essa adoção também pode funcionar na via inversa. Os budistas podem incorporar elementos do Cristianismo em sua prática – por exemplo, a tradição do serviço comunitário. Na tradição cristã, monges e freiras têm uma longa história de trabalho social, em particular nos campos da saúde e educação. O Budismo está muito atrás do Cristianismo no fornecimento de serviço para a grande comunidade humana por meio do trabalho social. De fato, um de meus amigos alemães, também budista, observou que, ao longo dos últimos 40 anos, embora muitos mosteiros tibetanos de vulto tenham sido erguidos no Nepal, pouquíssimos hospitais ou escolas foram construídos por esses monastérios. Meu amigo comentou que, se fossem mosteiros cristãos, junto com o aumento no número deles, com certeza teria havido também um aumento no número de escolas e postos de saúde. Um budista não pode manifestar nada em resposta a uma afirmação dessas a não ser inteira concordância.

Os budistas podem aprender muito com o serviço comunitário cristão. Entretanto, alguns de meus amigos cristãos manifestam enorme interesse pela filosofia budista da vacuidade. Para esses irmãos cristãos, observei que o ensinamento da vacuidade – o ensinamento de que todas as coisas são destituídas de qualquer existência absoluta, independente – é exclusivo do Budismo, e portanto, para um cristão praticante, seria sábio não se aprofundar demais nesse ensinamento. O motivo para essa cautela é que, se alguém começa a se aprofundar intensamente no ensinamento budista da vacuidade e a seguí-lo com fidelidade, pode destruir a fé em um criador – um ser absoluto, independente, eterno, que, em resumo, não é vazio.

Muitas pessoas manifestam sincera reverência tanto pelo Budismo quanto pelo Cristianismo, e especificamente pelos ensinamentos do Buda Shakyamuni e de Jesus Cristo. Sem dúvida, é de grande valor desenvolver um respeito profundo pelos professores e ensinamentos de todas as religiões do mundo, e em um estágio inicial dá para ser, por exemplo, praticante budista e cristão. Mas, se a pessoa optar por seguir um caminho em grande profundeza, será necessário abraçar um caminho espiritual junto com sua metafísica subjacente.

Podemos traçar aqui uma analogia com a educação. Começamos com uma educação em bases amplas; da escola primária até talvez a faculdade, quase todas as pessoas inicialmente estudam um currículo básico semelhante. Mas, se desejamos seguir uma especialização, quem sabe um doutorado ou alguma especialidade técnica, só podemos fazê-lo em um campo específico. Desse modo, do ponto de vista do praticante espiritual individual, à medida que se aprofunda no caminho espiritual, a prática de uma religião e de uma verdade torna-se importante. Assim, ao mesmo tempo em que é fundamental toda a sociedade humana acolher a realidade de muitos caminhos e muitas verdades, para uma pessoa pode ser melhor seguir um caminho e uma verdade.


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